No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do meu caminho. Além
de pedra, preconceito, desconhecimento e uma ignorância tremenda acerca da vida
de um homem. Um mito que conhecemos como
Carlos Drummond de Andrade. Lembro das aulas de literatura, os livros que fazem
questão de não ser criativos e mostrar uma faceta única de escritores
brilhantes. Facetas que às vezes ofuscam sua estrela e acabam afastando a
apreciação das pessoas pela sensibilidade do restante de sua obra.
Confesso que ainda não gosto da pedra no meio
do caminho, apesar de na maturidade dos meus 27 anos, pelo menos dez a mais do
que quando o li pela primeira vez, já entendo seu contexto e admiro o conjunto.
O ato heróico e a liderança do movimento modernista em Minas Gerais e todo
escândalo que gerou já são levados em consideração pela minha pessoa. Na
verdade, hoje me sinto quase que envergonhada de todas as vezes que critiquei
Drummond, sem sequer conhecê-lo. A pedra acabou sendo mesmo um obstáculo no meu
aprendizado e um desvio no caminho que depois trilhei em busca de concretizar
cada vez mais a admiração incomensurável que agora sinto diante desse mestre.
Hoje em dia o vejo como um ídolo. Um ideal que
não busco alcançar, porque sei das minhas limitações e em contra partida, sei
da grandeza dos seus escritos. Mas de fato é uma inspiração, uma alegria, quase
uma comoção quando me permito dedicar horas a leitura de seus poemas. O que
Drummond escreve alcança minha alma de uma forma peculiar. Expande minha forma
de ver o mundo, minha compreensão diante de fatos que ele, rebuscado ou
simples, descreve tão bem.
Acho que nesse momento cabe um belo exemplo.
O professor disserta sobre ponto difícil do programa.
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras desta vida.
O professor vai sacudí-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz,
Com medo de acordá-lo.
Ele que chegou a ser Ministro da
Educação, escrevia para um jornal escolar aos 16 anos. Já na adolescência,
mostrava afinidades com o português e sensibilidade para pincelar as palavras e
colocá-las em seu devido lugar. Quase como se elas só pudessem estar ali, onde
Drummond escolheu. Um quebra cabeças que ele montava com perfeição. Mas aos 17
anos foi expulso do colégio por conflitos com o professor de Português. Fico
pensando, anos depois, nos sentimentos desse mesmo professor ao ler a poesia
que escolhi para ilustrar meu texto. Acho que se pudesse refazer o passado, ele
teria abaixado a voz para não acordar Drummond dos sonhos que tinha.
Talvez esse episódio tenha feito com
que Carlos Drummond de Andrade abandonasse por um tempo as letras e se
dedicasse a profissão de farmacêutico. Mas os remédios convencionais não
curavam suas dores. Veio à decepção com a farmácia e a busca de novos
curativos. Livros, textos, poemas se tornaram a válvula de escape mais
freqüente desse homem que falava tão bem das emoções humanas. Todas elas. Boas
ou ruins. Que amedrontam ou trazem sentido a existência.
Drummond, assim como eu, era
mineiro. Ele é nascido no dia 31 de outubro de 1902, filho dos fazendeiros
Carlos de Paula Andrade, de quem herdou o primeiro nome e Julieta Augusta
Drummond de Andrade, que inspirou o segundo nome daquela que seria o amor de
sua vida: a filha Maria Julieta. Foi em uma cidadezinha perto da capital,
Itabira do Mato Dentro, que já se chamou Presidente Vargas, mas agora é
denominada de Itabira, apenas, que Carlos nasceu e viveu sua infância e parte
da adolescência. A cidade é conhecida pelos seus habitantes como cidade da poesia ou cidade do ferro. O poeta descreve:
Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira
Principalmente, nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calças.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
Principalmente, nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calças.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
É doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
E entre os dois mil e quinhentos moradores
aproximadamente, ele se sobressaiu, com a capacidade de levar ao mundo seu
vasto conhecimento sobre as dores e as delícias do mundo. Delícias sim, de um
amor natural, que sentia pela esposa Dolores Dutra de Moraes e pela namorada
Lygia Fernandes, com quem manteve um romance paralelo ao casamento, por 35
anos. Alguém que entendia tanto de amor, só poderia vivê-lo na sua plenitude.
Todos esses sentimentos deram origem a um
livro, “Amor Natural”, que só foi lançado em 1992 e gerou polêmica pelas
poesias ditas pornográficas. Eu as chamaria de poesias eróticas escritas com
elegância:
A língua girava no céu da boca.
Girava!
Eram duas bocas, no céu único.
O sexo desprendera-se de sua fundação,
errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.
Os dois nos movíamos possuídos, trespassados,
eleu.
A posse não resultava de ação e doação, nem
nos somava.
Consumia-nos em piscina de aniquilamento.
Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino,
vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.
A custo nossos corpos, içados do gelatinoso
jazigo, se restituíram à consciência.
O sexo reintegrou-se.
A vida repontou: a vida menor.
E a vida menor que reponta primeiro é
Carlos Flávio, que nasceu em 21 de março de 1927, mas viveu apenas meia hora, porque
foi asfixiado pelo cordão umbilical. José Maria Cançado, em sua biografia sobre
Drummond, diz que o escritor não fala sobre o filho nas suas obras. Nem mesmo o
poema que se inicia com os versos “O filho que não fiz / Hoje seria homem”
seria para Carlos Flávio. Pela minha compreensão, imagino que Drummond tenha
ficado em estado de choque, atônito com a tragédia que alcançou sua família.
Todo amor que daria para o filho, ele canalizou. Praticamente um ano
depois nasce Maria Julieta Drummond de Andrade, no dia 04 de março de 1928, sob
o signo de peixes. (Mesmo ano em que Drummond lançou o poema ”No Meio do
Caminho”. Soou como uma ironia para mim.) Isso me arrancou um suspiro de alegria,
porque também sou pisciana, do dia 12 de março. E piscianos tem essa tendência
melosa, com sensibilidade a flor da pele e um entendimento entre os pares que é
único. Por isso quero me atrever a falar que compreendo um pouco do que devia
ser a relação dessa mulher com o pai. Admiração profunda é o termo correto
nesse caso.
Aquele amor canalizado encontrou o momento certo para se doar e de amor
e doação foi construída a relação pai e filha que tanto me emociona. Queria eu
ter tido um pai assim. O que ele sentia por ela era tão intenso, que morreu 12
dias depois de Maria Julieta não resistir ao câncer. Foi-se o poeta, ficaram as
obras e a certeza de que viver só vale a pena se for intensamente.